Quincy Jones e o Rei (02)


O produtor musical Quincy Jones recorda Michael Jackson em sua autobiografia

¨A primeira vez que Michael veio a minha casa, ele me falou "Estou pronto para fazer o meu primeiro álbum solo. Você acha que pode me ajudar a achar um produtor?"

Eu falei: "Eu tenho o prato cheio agora, estou tentando começar a pré-produção do filme, mas eu vou pensar."

Enquanto ensaiávamos as cenas musicais do The Wiz, eu ficava cada vez mais e mais impressionado. Ele estava sempre superpreparado. Ele apareceu às 5h da manhã para a maquiagem, e tinha todo detalhe de suas falas memorizadas e pronto para toda filmagem.

Ele também sabia todos passos de dança, toda palavra de todo diálogo, e todas as letras de todas canções de todo mundo da produção. Uma parte do papel dele era tirar pedacinhos de papel com provérbios de famosos filósofos de sua roupa.

Uma tarde, quando ensaiávamos uma cena, ele ficava pronunciando errado o nome de Sócrates, que era uma das falas. Ele ficava se referindo a ele como "Socrátes". Depois de 3 dias, ninguém o tinha corrigido, então eu puxei para um canto durante um intervalo e cochichei: "Michael, antes que isso se torne costume, eu acho que você deveria saber que o nome é pronunciado Sócrates".

Ele falou: "Verdade?" Que reação! Ele foi tão educado e doce. Aqueles olhos enormes se abriram, e bem naquele momento eu me comprometi: "Eu queria tentar e produzir o seu novo disco".

Depois do fim das filmagens, ele voltou para a gravadora, Epic, e junto com os empresários, Freddie DeMann e Ron Weisner, contou para os chefes que ele queria que eu produzisse o seu álbum. Eles não gostaram.

Afinal, era 1977 e a disco music reinava. Disseram:

"Quincy Jones é muito jazzista, e ele só produziu hits dance com os Brothers Johnson".

Foram as mesmas palavras que o pessoal da Motown usou para me descrever anos antes de Stevie Wonder e Marvin Gaye me telefonarem e falar "Vamos fazer algo juntos".

Quando Michael compartilhou de sua preocupação, eu falei: "Se for pra nós trabalharmos juntos, Deus vai fazer isso acontecer. Não se preocupe".

Michael é um devoto das Testemunhas de Jeová - ele às vezes até se vestia como uma pessoa normal e andava pela vizinhança para passar a palavra - mas ele não estava vivendo aquilo como religião.

Ele voltou para a Epic com DeMann e Weisner e falou: "Eu não ligo pro que vocês pensam. Quincy vai fazer o meu disco", e eles concordaram.

Ensaiamos tudo na minha casa. Ele era tão tímido que ele tinha que se sentar e cantar atrás do sofá, virado de costas, enquanto eu ficava sentado, cobrindo meus olhos e com as luzes apagadas.

Tentamos todo tipo de coisa que eu tinha aprendido durante vários anos para ajudá-lo com seu crescimento artístico, como descer três tonalidades nos acordes para dar flexibilidade e uma variação mais madura nos agudos e graves, e várias mudanças no compasso.

Eu o tentei e pressionei a fazer canções com mais profundidade, algumas delas sobre relacionamentos. Setth Riggs, um dos maiores técnicos vocais, deu a ele exercícios de aquecimento bem fortes, para aumentar o alcance vocal em ao menos metade de uma oitava, o que eu realmente precisava para conseguir o "drama".

Michael e eu nos dávamos muito bem. Quando estávamos prontos para gravar, eu fiz aquela pose e atacamos o disco. Michael fez a maioria dos vocais em uma só tomada, sem ter que regravar.

Como resultado, o disco Off the Wall vendeu 10 milhões de cópias. O que é isso para jazz? Ironicamente, todos os que duvidavam na Epic, brancos ou negros, ficaram no emprego por causa do sucesso do disco, o disco mais vendido de um negro até aquela época.

Logo quando Michael e eu estávamos para começar um segundo álbum, conheci Steven Spielberg, que estava fazendo E.T. enquanto eu fazia Thriller. Depois de E.T. chegar e conquistar o mundo, Steven me pediu para fazer uma canção para o E.T. Storybook, com Michael cantando.

Eu já estava atrasado nas gravações de Thriller. Tínhamos apenas quatro meses para terminar, mas eu falei que estava tudo certo, porque inicialmente o projeto envolvia apenas uma canção. Eu pedi a Marilyn, Alan Bergman e Rod Temperton para a comporem, a qual Michael cantou, e Steven amou.

Ele falou: "Nossa, isso é ótimo! Porque vocês não fazem o disco inteiro?"

Isso era um desafio, já que tínhamos que cozinhar aquela experiência visual de duas horas - um dos filmes mais bem-sucedidos da história - em uma experiência auditiva de 40 minutos.

Steven não tinha idéia do tanto de tempo que levava para se fazer um disco desse. Além disso, a Epic estava ficando nervosa com Thriller. Foi quando chegaram Kathy Kennedy, um produtor de 28 anos, e o editor do filme, Bruce Cannon, com uma caixa enorme carregada com os passos de E.T., efeitos sonoros, a trilha inteira de John Williams, e todos os diálogos do filme.

Eu comecei logo em seguida, assumindo que os advogados da Universal iriam tomar conta dos detalhes.

Começamos o projeto e era uma estrada de pedregulhos. Eles tinham uma narrativa mediana, e tivemos que reescrevê-la para que o ouvinte que nunca tinha visto o filme pudesse entender perfeitamente a história ao ouvir o disco.

Nem tínhamos tempo para colocar em uma fita separada; era só um rolo contínuo, de 40 minutos, com o diálogo, música e efeitos sonoros. Não havia nenhuma edição digital na época, que teria salvado tempo e raiva. Foi um pesadelo. Levou seis semanas para aprontar tudo, enquanto gravávamos Thriller ao mesmo tempo, e agora eu tinha só dois meses para terminá-lo.

No meio tempo, a Epic já estava sabendo o que Michael estava fazendo, e a merda foi pro ventilador. A MCA Records e a Universal Studios, onde o Steven tinha o seu quartel-general, nem se importaram em acertar as coisas legais com a Epic, para o maior artista negro do mundo.

As ações deles pareciam refletir a atitude de que "Michael Jackson está trabalhando com Spielberg. Vocês deveriam estar feliz". Eles não tinham nenhum respeito por Michael.

Walter Yetnikoff, o presidente da Epic Records, veio espumando de raiva. "Pro inferno o Quincy. Pro inferno o Steven. Pro inferno o Sid Scheinberg e a Universal."

Ele soltou uma proposta. Ele queria meio milhão de dólares em dinheiro vivo, ou então o E.T. Storybook não seria lançado. A Universal continuava complacente e parecia não se preocupar. Eles não ligavam. E Steven era leal com a Universal. Ele não queria ouvir nada.

Eu estava recebendo faxes e ligações em conferência, durante todo o dia e noite, sobre o E.T. Storybook, enquanto tentava trabalhar com Thriller. E tudo se alongou por mais dois meses, advogados indo e voltando, como só eles sabem fazer.

Walter Yetnikoff queria o meio milhão de dólares a ser pago a CBS, que era dona da Epic. Eles pegaram tudo pra eles. Nem Walter ou a CBS pagaram um centavo sequer a mim ou a Michael - nunca.

No fim, a Universal lançou 500.000 cópias do disco em um pacote de luxo, que era tudo que o acordo permitia. Virou item de colecionador imediatamente, e o álbum ganhou um Grammy

(texto dividido em 04 partes)

Fonte: MJBeats