Entrevista com Giuseppe Mazzola para a revista ''Invincible''


Entrevista inédita com o desenhista e fotógrafo Giuseppe Mazzola para a revista Invincible [Trechos selecionados].

[Giuseppe] Michael Jackson foi o foco de inspiração humana. Quando era criança, eu queria ser ele: O salvador do mundo das ideias através de qualquer coisa emocionante e colorida como a sua música. Nunca fui um fanático, mas eu literalmente idolatrava o seu pensamento, tanto que a minha fé para com a humanidade e o mundo se baseia nas suas palavras, escritas nas letras das canções e nos atos de vida e na filantropia que enriquecem a sua biografia. Michael me deu força para acreditar que a dor existe, mas que o sofrimento é opcional.

Você teve a oportunidade de fotografar muitas estrelas internacionais. Mas como fã de Michael Jackson, fotografar foi um exercício mais difícil ou mais fácil, dado o carinho que sentia pelo artista?

Fotografar Michael Jackson era o sonho e a ambição mais extrema de cada fotógrafo. Estamos falando do artista mais eclético, imenso e popular da história do Ocidente. A minha sorte em poder fotografar a ele representou um privilégio o qual, no início, me deixou desorientado. Eu tinha medo de não estar à altura da sua grandeza. Reconheci a sua imensidão artística e a importância mediática e comunicativa de cada instante perto dele.

Uma fotografia nunca era fácil. Cada vez eu observava a fragilidade da sua carga emocional, arrastada e imersa na partilha universal. Eu estava sempre com os olhos brilhantes e pronto para chorar. Não falo de envolvimento fanático, mas de empatia. A consciência de um sentimento não abstrato ou avisado, mas plástico.

Ainda me lembro de uma sua conferência de imprensa em New York, em fevereiro de 2000. Era o dia dos namorados e o Michael tinha escolhido esse dia para discutir os problemas da infância, sem esquecer a sua. Enquanto multidões histéricas elogiavam o seu sofrimento, como se hoje, ser um menino abusado fosse um prêmio, eu me preocupava com a realização de um ensaio fotográfico.

Naquele dia eu vi um Michael Jackson humano, perdido na fragilidade do seu físico grácil e marcado pela insatisfação do seu tempo. Olhos grandes, quase desenhados, lábios apertados, uma infinita sombra sobre o seu rosto escondido sob longos cabelos pretos. Não era o Michael da MTV, não era o fenômeno do palco, não era a atmosfera dos Grammy Awards, que tantas vezes o fizeram entrar no livro Guinness dos Recordes.

Pela primeira vez, naquele palco, havia um homem cansado, que falava ao mundo como se estivesse falando ao vento. Lembro a dificuldade em fotografar esse dia. Eu não tinha diante de mim a maior estrela da música contemporânea venerada por meio mundo; tinha diante de mim um homem descascado nas suas feridas emocionais que pedia [e eu também] para ser levado a sério. E foi o que fiz. Mas sempre foi misto de dor imensa e alegria de poder dizer "eu estava lá".

Permanece incorrupta a consciência de como a arte de Michael se mantém além das mais imagináveis colisões, democratizando tudo e nada, no modelo da citação ao clássico, do elogio exacerbado;

Com estas palavras espero ter explicado porque quase todo o meu trabalho sobre Michael Jackson permanece inédito. Ele não estava bem, havia muito dor nele, ele não iria gostar que algumas fotos o representassem a nível mundial.

Uma vez ele me perguntou se eu poderia ter a gentileza de guardar somente para mim as fotos da Conferência Heal The Kids. Algumas imagens já tinham sido publicadas, daí eu recebi o pedido dele e coloquei os negativos na gaveta.

Você encontrou com Michael Jackson várias vezes. Pode nos contar quando como aconteceu?


Eu tive a honra, o privilégio de conhecer Michael Jackson anos atrás. Era 1996, por ocasião do World Music Awards. Aquele primeiro encontro foi fortuito, nos conhecemos dentro de uma loja, onde ele estava se preparando para fazer compras. Ele notou um quadro meu e quis me conhecer. Provei, pela primeira vez, o privilégio de ver realizado o maior sonho da minha vida. Eu não podia acreditar!

Foi ele que me disse, "Vem cá, me dê um abraço'', e eu lhe respondi "Obrigado, Michael, mas há uma multidão, tenho medo que você se machuque... não te peço nem uma foto.''

Então, ele pegou uma foto que tinha entre as mãos, a autografou e me disse, "não vou esquecê-lo" e apertou a minha mão, enquanto o segurança o conduzia para fora.

Nos anos subsequentes, me encontrei com Michael várias vezes em diferentes partes do mundo: Londres, Milão, Munique, New York, Los Angeles.

Você teve a oportunidade de mostrar o seu trabalho?

Sem dúvida! A primeira vez durante a HIStory Tour, por ocasião da etapa de Milão. Eu estava em frente ao hotel onde ele estava hospedado; um homem da segurança veio ter comigo e me disse, ''Michael viu o seu desenho e gostaria de tê-lo... Pode me entregar?''

Claramente eu lhe respondi que sim. Depois de algumas horas este homem voltou de mim com uma foto de Michael autografada e me disse, "Michael pede desculpas por não poder lhe receber, pois neste momento não é possível. Me disse para lhe dizer que o seu estilo de desenhar é muito afetuoso e lhe agradece.''

Esse foi o primeiro contato artístico com o Rei do Pop. 

A mudança aconteceu em 1999, quando Jackson reconheceu um desenho meu; eu tinha feito um retrato de Michael inspirado na capa do single de Smile, com muitos elementos contra o nazismo e o racismo. Eu estava em frente ao hotel onde ele estava, naquele de Munique, na Alemanha. 

Michael pediu ao seu gerente de turnê para organizar um encontro e, a partir daí a poucas horas, o ponto de chegada se tornou bate-papo incrível e informal entre dois amantes da arte. Quinze, talvez vinte minutos, eu e Michael sozinhos no quarto discutindo sobre a cidade, outras cidades, sobre arte, a dele, a minha, todos os tipos.

Ambos frutos do pop, ele soberano, eu súdito; eu tinha comigo uma coleção de meus desenhos dedicados a ele, lhe entreguei e ele me disse, ''Quem é o artista que criou estes retratos? Foi você?''

Tinha sido eu, e eu lhe disse que queria assiná-los como parte de um presente para ele. Ele segurou firmemente os desenhos e eu fiquei em silêncio.

Ele me perguntou se me deixava envergonhado o fato de ele olhar para mim, enquanto eu falava. Eu respondi que sim e ele ficou em silêncio. E então, ele começou a falar de arte, querendo saber quais eram os meus pintores favoritos, como eu fazia os meus desenhos, o que sentia no meu coração quando o lápis arranhava a folha. Era tudo surreal, os papéis estavam invertidos.

Naquele dia, ele me levou à janela e me disse, ''acene com a mão... cumprimente a eles'', e eu não atendi por timidez, mas mexi com a cortina e houve dois ou três gritos de delírio.

Ele disse, ''Giuseppi... [com o "i", não com "e"] ...você vai ao supermercado?"

Eu respondi que sim.

" Bem, vá mais vezes, é uma sorte poder decidir o que comer. E coma, tens que comer, como tens que desenhar, sei que tens de comer, me prometa.''

Embora eu não compreendesse como um estranho pudesse sentir as minhas fragilidades a partir de dois ou três comentários sobre o meu processo criativo, eu prometi que eu o faria.

E menti: alguns anos mais tarde, eu entrei em uma terapia para trata de distúrbios alimentares e anorexia. Talvez os desenhos e a minha história tenham dito tanto a Michael, e eu burro, não percebi nada.

Depois desse dia, eu comecei a trabalhar para ele, usando as minhas energias na colaboração artística com um dos maiores fã clube americanos, o único autorizado por ele.

Com o passar do tempo, eu me tornei cada vez mais como ''uma mosca na parede'' quando Michael estava por perto; porque o desejo de estudar e compreender este artista [que para mim continua a ser um gênio desmedidamente indiscutível] ultrapassava todas as formas de fanatismo e exaltação.

Ao longo dos anos, entre 2001 e 2003, nos falamos algumas vezes ao telefone [era sempre ele a fazê-lo, eu não tinha o seu número]. As chamadas eram centradas na arte; ele era reservado, quase nunca falava sobre si mesmo e eu não lhe perguntava.

Ele queria saber o que eu andava fazendo, se eu estava me alimentando.. me perguntava, ''você comprou para comer?''

Eu sabia porque ele tinha me perguntado. Eu fiquei em silêncio porque ...não! Eu nunca me senti pronto para dar ''um nome'' a determinadas ''salas escuras'' da minha vida; talvez algo semelhante às suas mais dolorosas nuances.

Um dia, ele me disse, ''você tem que fazer uma escolha, ou usar uma camiseta com o meu rosto e me pedir fotos e autógrafos, ou você se veste como você é se se sentar próximo a mim.''

Eu escolhi a segunda entre as duas opções. Era o ano de 2003, às vésperas da catástrofe mais irremediável na história de Michael. Desde aquele dia, eu nunca mais tive qualquer testemunho sobre eu e ele, no entanto, eu pude desfrutar de alguns momentos ao seu lado no rancho Neverland e ter a honra de ser apreciado por ele pelo meu talento.

Qual é a coisa mais importante que você aprendeu com os seus vários encontros com ele e que gostaria de contar àqueles que não tiveram essa oportunidade?

Por causa de Michael eu aprendi tantas coisas sobre valores morais... toda a minha existência moral se baseia no seu pensamento. Eu nunca imitei as suas ações para me sentir semelhante a ele, mas fiz da sua vida um instrumento para analisar e olhar para mim mesmo, para entender e me tornar uma pessoa melhor.


Graças a ele eu aprendi que na vida, a humildade e a bondade são as duas armas mais poderosas para podermos enfrentar todo o mal.

Aprendi que ouvir é um dom que nos permite descobrir e compreender as diferenças, de modo a trazer enriquecimento pessoal. Michael me ensinou que a palavra é mais poderosa do que uma bomba atômica;


Percebi, graças a ele, que o amor verdadeiro é incondicional e é tão forte a ponto de se fundir com a fé, até se tornar o verdadeiro sentido de toda uma vida.

Me ensinou que as aparências são apenas máscaras e que nunca, jamais devemos julgar o próximo. 

Me ensinou que todos temos um coração, mesmo quando os acontecimentos nos tornam maus; me ensinou que o amor é realmente a única cura para qualquer doença da alma.


E eu percebi que para mudar o mundo, você precisa ter fome, cultivar um fruto, colhê-lo e compartilhá-lo. E depois de ter me mostrado o significado vital da fome, ele me ensinou sobre nunca esquecer de comer.

Se hoje sou essa bela pessoa que ouve e ajuda e ama o próximo - como as pessoas dizem - eu devo isso também e sobretudo a ele.

Qual o tema visual você gostaria de explorar, se hoje tivesse a oportunidade de trabalhar para ele?

Eu teria gostado de fazer duas coisas com ele: a primeira é a de realizar uma reportagem fotográfica de denúncia, nos lugares onde a natureza precisa da nossa ajuda e onde as pessoas se tornam invisíveis por causa da pobreza e da indiferença dos países ricos; um pouco como o trabalho da National Geographic ou como as propagandas de sensibilização da Unicef.

Tenho a certeza de que a verdade da criação e a emergência humanitária - tão afins com Michael - seriam uma grande fonte de ideias morais e artísticas, que ele teria adorado.

A segunda é a história da arte através do foto-pittorialismo - utilizar a câmera para pensar na imagem como uma pintura e, em seguida, remodelar o clique através do desenho para dar ao retrato um aspecto mais dramático e surreal. 

Eu teria feito isso usando o seu rosto e seu carisma, reconstruindo os grandes retratos dos séculos XV e XVII, de acordo com as metodologias e as intuições artísticas dos grandes mestres. Um retrato de Michael segundo as linhas sintéticas e místicas de Leonardo da Vinci ou mediante a construção plástica e dramática típica da pintura arterial e visceral de Caravaggio. 

Eu queria fazer isso com ele, retornar à grande história da arte através da minha arte e tendo como sujeito / musa o emblema físico e cultural da arte contemporânea de Michael Jackson. Tenho a certeza que ambos os meus sonhos cairiam no gosto de Michael, moral e artisticamente.

Uma história sobre a coisa mais louca que você fez para ele como fã e fotógrafo?

Há tantas histórias... acredito não ter feito coisas loucas, sempre fui focado no aspecto emocional dos meus encontros com ele e deixei pouco espaço à exuberância do mito. Mas há uma história que eu gostaria de contar e que diz respeito a dois entre os maiores artistas do século XX: Michael Jackson e David Lynch.

Em 2003, eu estive em Los Angeles e eu tive mais uma oportunidade de encontrar Michael. Falamos de cinema e ele me perguntou qual era o diretor cujo vídeo eu gostaria de assistir. Eu respondi que seria sobre David Lynch, com as suas sombrias investigações sobre a natureza humana e as suas nuances mórbidas, e que seria perfeito para um curta-metragem pelos tons noir e fechados. 

Claramente eu sabia que Lynch tinha dirigido o teaser de Dangerous e deduzi que Michael conhecia o valor do trabalho de Lynch. Sonhando com um autógrafo de ambos, e apesar de ter dito a Michael sobre nunca pedir autógrafos, carregava comigo uma foto onde eles apareciam juntos.


Michael me disse que não se recordava muito do comercial e eu observei para ele que na internet encontramos algumas fotos. Eu lhe mostrei a minha foto, ele a olhou e disse, ''há outras?"

"Não, Michael, não acredito. Mas se quiser, eu as procuro."

Ele percebeu que eu queria muito essa foto, assim ele a pegou e, caminhando para a sala, a autografou e me disse, ''a assinatura ficou péssima, tem uma cópia?''

Eu respondi que não, ele sorriu e com outro marcador fez rabiscos e desenhos na foto. E acrescentou: "Eu tenho certeza que você nunca vai vender esta foto, porque ficou feio...''

Nós demos risada. Admito que queria morrer, um autógrafo... e feio! Mas tudo bem.


Exatamente 10 anos depois, em 9 de outubro de 2013, trabalhei com o David Lynch por dois dias inteiros. Qual outra melhor oportunidade para completar a obra! Eu levei a foto e lhe pedi o autógrafo. Ele olhou e me disse, ''Sim, me lembro de ter feito com ele o comercial para um de seus discos. Há fotos desse trabalho?"

Eu respondí, ''Sr. Lynch, na internet há diversas fotos do senhor com sr. Jackson, tanto do making of do comercial como do ensaio fotográfico.''

Ele me respondeu, surpreso, ''Eu não sabia, eu nunca vi essas fotos na minha vida!"

Eu lhe entreguei a fotografia manuscrita. Ele se concentrou no rosto de Michael, passou alguns segundos em silêncio, eu eu percebi que uma lembrança ou emoção amadurecia na mente do realizador. 

Então ele me disse, ''Sem sonhos não se vai a lado nenhum. Mesmo que não se realizem, os sonhos são um caminho para a felicidade. A arte exorcizando o mal. Este homem viveu de sonhos e da arte até o fim.''

Eu fiquei sem palavras, abalado, peguei de volta a fotografia e me lembrei daquele dia em que Michael me disse, 'Eu tenho a certeza de que você nunca a venderá.' Tudo verdade. Uma fotografia sem preço, uma lembrança de valor inestimável.''

Giuseppe Mazzole e David Lynch

Matéria publicada na edição nro. 10 da revista Invincible, Outubro de 2016.


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Fonte: http://mjj.freeforumzone.com