Depoimento de Nelson Perez


''O ano era 1996. Estava há quatro anos no Jornal do Brasil, feliz como pinto no lixo. Constava uma pauta, comum a vários jornais diários no Rio, de problemas na Zona Sul, tiroteios em morros, e outras mazelas que nas décadas de 80 e 90 eram muito mais corriqueiras do que recentemente. Ainda bem que melhoramos, e muito!

Escuto no rádio do carro: “Perez, volta para a redação, temos uma pauta aqui especial e você está nela”. Óbvio que achei que era uma P… com letra maiúscula; nunca nos chamavam por conta de uma pauta ‘light’, era sempre algo inusitado, e desta vez não poderia ser diferente.

Cheguei já achando que ia para algum morro fotografar traficantes. Mas não era para ser paparazzi de traficantes, e sim de um “astro astronômico”, se me permitem o trocadilho.

O seguinte diálogo se travou na fotografia:

- Perez, Michael Jackson está vindo a Salvador e ao Rio para gravar um clip. Você parte amanhã para a Bahia, vamos fazer um especial sobre ele no Caderno B (caderno de cultura do JB).

- Beleza, vou eu e quem?

- Só você e o repórter! – responde o editor de fotografia, que por ser comunista de nascimento achava que estava no Politiburo soviético.


Claro que a tensão logo domina qualquer um que segura uma responsabilidade dessa, mas fiquei relativamente tranquilo, pois achei que iria convencê-lo a enviar mais um fotógrafo, mas ele negou, e na verdade não foi surpresa para mim, que o conhecia bem. 

Só que após isso, vamos ser sinceros, fiquei mega nervoso com a pauta. De qualquer forma embarquei para Salvador no dia seguinte de mala e cuia. Fiquei hospedado no melhor hotel da cidade; aliás, no mesmo do astro pop.

Cheguei numa quinta-feira, se não me falha a memória, à tarde. Aproveitei e dei uma saída rápida, voltando logo para o hotel. Resolvi não sair à noite pois o Michael chegaria dos Estados Unidos na sexta-feira bem cedo, quando iniciaria meu périplo profissional.

Estava tranquilo, assistindo ao Jornal Nacional, quando tocou a campainha. Procurei verificar quem seria pelo olho mágico e não acreditei: não era o Michael Jackson, não, nem o Spike Lee. Era um colega de profissão, o Carlos Magno que, por decisão do meu editor, enviou-o sem me avisar. Isso faz parte das decisões de um editor stalinista!

- Você aqui, Magno?

- Pois é, o Alaor decidiu que você precisava de ajuda, estamos ai!

Naquela situação eu precisaria, mas quando eu falei com ele não achava isso. Com a equipe formada, resolvemos sair para conhecer a cidade. Não queria isso na verdade mas… sabe como é o ditado da andorinha. 

Saímos e conseguimos na mesma noite um bom motorista de táxi para trabalhar conosco no dia seguinte. César Bahia foi uma peça fundamental em nosso trabalho, vou falar mais adiante sobre o trabalho dele.

Fomos ao Pelourinho atrás de um dos personagens da gravação do astro, o Neguinho do Samba, um dos fundadores do Olodum. Contato vai, contato vem… celular na época era uma negação! Se hoje é ruim imaginem há 16 anos!. 

Finalmente conseguimos encontrá-lo. Marcamos a reunião num restaurante no próprio Pelourinho pois precisávamos de algumas informações sobre a gravação do sábado. Não sabíamos muito; aliás, nada.


Esperamos pacientemente por ele no restaurante marcado. Vocês podem imaginar o tamanho da paciência, pois estávamos em Salvador! Nisso que chega a figura, imponente que só, bem mais alto que eu (acho que tenho 1,86 m), ou nem tanto e eu já estava bêbado pela longa espera. Cumprimentou-me e mandou o seguinte para o Magno, que estava sentado no canto:

- How are you, meu rei?

Não entendi nada dessa introdução shakespeariana em pleno pelourinho, mas rolou mesmo isso. O fato apurado depois é que o Neguinho confundiu o Magno com o cineasta do clip do Michael, o famoso Spike Lee. 

Claro que por conta disso usamos e abusamos dessa semelhança! Começamos um papo sobre tudo, acho que falamos até sobre astrofísica, juro que não me lembro de detalhes, mas algumas coisa ficaram marcadas, como esse diálogo abaixo, eu, Magno e ele:

- Neguinho, nós queremos mesmo é saber como vai ser a gravação, você pode falar o que ficou acertado com a produção do Michael, só para sabermos como vamos trabalhar no sábado?

- Olha meu rei, fizemos um contrato com a produção dele que só irão usar o vídeo, não haverá o áudio, só poderão usar imagens sem som, entendem?

Como assim cara pálida, o mega astro do pop vem ao Brasil com uma mega equipe de filmagem e faz um acordo de usar apenas a imagem, sem o áudio que é a principal matéria-prima de qualquer cantor, ator ou sei lá o quê?! 

Olhei para o Magno, que como eu não entendeu nada. Achei que, como vanguardista que era, o Michael Jackson poderia estar voltando à época do cinema mudo. Poderia ser, realmente, em se tratando do cineasta que ele trouxe.


Enfim, não era isso. Na verdade nem sei porque o Neguinho falou isso, acho que nem ele mesmo sabe, pois logo após conversarmos, tomarmos algumas cervas e comermos um bom bobó de camarão, entre um argumento e outro nosso, simplesmente ele dormiu na mesa. 

Isso é fato, o Neguinho dormiu na mesa o resto do tempo que tínhamos, a ponto de pedirmos a conta, eu e Magno, e termos que acordá-lo para irmos embora. Mesmo tendo esclarecido o mal entendido em relação ao Spike Lee, ele se despediu como chegou:

- My king, valeu mesmo!!

Pois bem, fomos para a noite – era uma criança essa noite -, dá para imaginar nosso desempenho. Conseguimos chegar a tempo de não perder o café da manhã no hotel, pegar o equipamento e ir para o aeroporto esperar o mega ultra astro Michael Jackson. 

Foi difícil esse período do dia, ressaca complexa e conjunta, aeroporto lotado esperando o astro, calor de 40 graus à sombra, Aeronáutica organizando a chegada do pop.

Eu já tinha passado mal antes, Magno não estava diferente, a ressaca já gritava em nós dois. Michael desembarca, eu em uma escada improvisada, colocada no cercado que os milicos fizeram na pista. Quando ele começa a sair do avião, sinto uma puxada no meu colete, abaixo de mim. Ignoro, mas quem puxava insistia e me chamava:

- Perez, fica tranquilo, já fiz tudo dentro do avião, a primeira página já é minha.

Isso realmente era de f… qualquer vivente!!! Um colega tinha vindo junto do voo e nem nos avisaram! Era o João Cerqueira, fotógrafo dos mais talentosos que já conheci, mas diante da minha ressaca e do mal humor, quase chutei o Joãozinho naquele momento; sim, pois a escada dobrou e eu caí. 

Quando o Michael resolveu correr pelo meio da pista até o saguão do terminal, foi um ‘barata voa’ tremendo, cada um por si, eu corri o quanto pude, com um milico da Aeronáutica atrás, mas não aguentei e desabei no chão. Admito sem nenhuma vergonha, era o meu limite naquele dia…

Pois vamos ao dia da gravação: tudo era complicado, todo o Pelourinho estava cercado e vigiado pela PM, mas eu e Magno tínhamos alugado um quarto em um hotel bem em frente ao set de filmagem, o que daria passagem livre até certo momento antes da gravação; depois ninguém entraria, apenas o Magno conseguiu a façanha pois o cara era realmente o irmão do Spike Lee separado no nascimento.

Ele, como o original, entrava e saia com sua mochilinha nas costas o tempo todo no set, sem nenhum segurança a incomodá-lo nem a perguntar quem era.


Pois então montamos esse ‘bunker’ no hotel próximo. Bem, eu teria que entrar no dia da filmagem e ficar no quarto apenas para receber o ‘filme’ e ir revelando. Isso mesmo turma digital, era negativo naquela época! Cheguei cedo e o cerco da PM estava fechado mas, sinceramente, achei que fosse fácil diante do número de estrangeiros que circulavam no set. 

Fui observar o melhor ponto para entrar e encontrei, em uma rua de acesso, apenas dois PMs montando guarda. Me aproximei e, achando que ia me dar bem com meu plano, “mandei” em meu inglês macarrônico, pois eu corria o risco de o PM ter a mesma fluência que a minha, não podia falar muita besteira para ele:

- Good morning, I am of the film crew, must go!

E ele responde com a maior educação:

- Meu rei, não sei bem o que está falando, mas já te digo uma coisa, para entrar tem que subir a rua e dobrar a primeira à direita. Aqui ninguém entra! É ordem do ‘seu Michael’.

Foi difícil conter o riso, na boa, o PM me falando isso com a maior naturalidade do mundo foi difícil! Não consegui furar o cerco. Tendo que voltar para o hotel, inciamos o plano B. 

O Magno jogava o filme do alto do sobrado para a repórter, que entregava para o taxista, e este me levava no Othon onde eu revelava no banheiro e transmitia para o Rio, mas como se algo pode dar errado com certeza irá ocorrer, o local da gravação (não o local em si, mas a melhor posição de luz), foi alterado nos 45 minutos da prorrogação, colocando a posição em que o Magno se encontrava completamente inútil, do ponto de vista fotográfico.


Como um bom carioca, não se deixou abalar pela dificuldade, e saindo em campo na mesma hora encontrou um local em uma oficina de mamulengos. Claro que foi barrado imediatamente, mas após muita conversa e uma pequena propina de 100 pilas, foi liberado, tendo até ficado amigo do artista, com direito a bobó de camarão após as fotos…

Como o motorista de táxi me ajudava na revelação, conseguimos transmitir um grande número de fotos a tempo de fechar a edição de domingo. Após algumas transmissões, larguei tudo e fui correndo para o aeroporto, para voltar ao Rio no mesmo voo que o Michael.


Todas as fotos do Michael no set são do Carlos Magno, que gentilmente me cedeu às imagens para contar este ‘causo’. Apenas a do Michael no avião e a do Spike junto do Neguinho do Samba são de minha autoria. 

Essa foi uma das melhores experiências jornalisticas que tive, com certeza deve ter sido do Magno, também. Fizemos uma parceria que poucas vezes acontece na nossa profissão, pois muitas vezes, a ambição pessoal supera o espírito de trabalho em conjunto.''

Nelson Perez (jornalista)

Fonte: https://elefanteverde.com.br