Sobre o desafio do vitiligo


'Suponha que você tenha trabalhado duro, dirigido a si mesmo para chegar ao auge do sucesso e alcançado um pouco de fama, por causa de sua contribuição a uma indústria carregada de talentos, além de uma feroz concorrência.

Suponha que você soubesse que essa indústria exige que você sempre invente algo novo e fresco, a fim de manter o interesse das pessoas, após o lançamento do seu trabalho. Suponha que para manter-se contemporâneo, você tenha que reinventar a si mesmo com freqüência, ao longo do caminho.

Michael escondeu a condição (de sua pele) por um longo tempo, tentando até mesmo escondê-la de sua maquiadora. Ele não quis revelar publicamente a sua luta mais particular. No entanto, o vitiligo foi se tornando mais e mais visível, as mudanças em seu tom de pele eram mais e mais evidentes. No entanto, Michael, sempre perfeccionista, não queria decepcionar o seu público. Eventualmente, não havia escolha, a não ser revelar sua condição.

Suponha que você tenha atingido um nível de fama, onde o seu nome e produto são instantaneamente reconhecidos ao redor do mundo. Se você ama o seu trabalho e ama o seu público e se a criação, para você, é como respirar, você não pode viver sem isso. E se a sua sobrevivência depende de sua voz, seu corpo, sua aparência, e seu apelo global?

E se a indústria escolhida é monitorada e controlada por um meio público - a imprensa - com o poder de lhe ascender ou lhe derrubar, você e ao seu futuro? E se forem poucos, na indústria da mídia, que sejam amáveis e lhe apoiem, aonde mais se interessem ​​apenas em estórias suculentas, com detalhes de escândalos, fraquezas e uma insinuação de fracasso? E se eles estão apenas esperando que você deslize? E se eles estão perpetuamente apenas prestes a atacar?

E, se apesar de toda esta pressão de estar sempre presente e relevante, o seu corpo, a máquina que impulsiona o seu trabalho, começar a ter alguns problemas sérios? E se o seu corpo começa a te trair? E se toda a sua razão de ser, de repente, entrar em questão? E se o futuro é incerto? E se um público volúvel com um curto período de atenção e memória ainda menor, começa a perder o interesse, porque você não tem mais uma boa aparência? Quando sua vida está no centro das atenções? O que você faz, então?

Será que você tenta esconder suas imperfeições? É claro. Todos nós fazemos isso. Nós usamos meias nas pernas; colocamos silicone nos seios; tomamos Viagra; usamos cremes e hormônios, sabonetes e perfumes; colocamos permanentes em nosso cabelo; aumentamos o volume de nossas roupas íntimas; usamos saltos altos, e vamos à academia de ginástica; compramos as últimas modas, colocamos tatuagens ou piercings; apliques no comprimento do cabelo; buscamos pedicures e/ou unhas postiças; tomamos vitaminas; fazemos uma dieta, fazemos bronzeamento artificial e mil outras coisas, para ficarmos atraentes e relevantes.

Então, quando Michael Jackson foi diagnosticado com vitiligo - uma doença que transforma a pele - por volta de 1983, por que foi tão difícil de entender (a doença) como uma ameaça que teria sido para alguém que ganhava a vida no palco? Como é que, quando ele explicou o que estava acontecendo com seu corpo, alguns se recusaram a acreditar nele?

Uma doença que estraga o seu rosto e o seu corpo deve ser muito ameaçadora para alguém que ganha a sua vida no palco. Deve ter levantado questões de autoestima enormes para Michael, pois ele tinha acne, quando adolescente. Deve ter havido um sentimento enorme de traição de seu próprio corpo, seu próprio sistema imunológico se voltando contra você. Você deve questionar e responsabilizar-se inicialmente. Você deve sentir uma sensação de vergonha e a vontade de esconder o seu corpo manchado.

Poderia ter sido assustador e desanimador, como o primeiro artista negro a fazer tantas coisas pioneiras, de repente corre o risco de perder a sua identidade racial? Ele estaria se sentindo ferido, ao ser acusado de trair e abandonar deliberadamente a sua raça? Como não poderia o público entender o quão doloroso deve ter sido para um homem que cresceu em uma família famosa negra?

Um homem que cresceu com James Brown e que, por toda uma geração de crianças, tornou ok ser negro, ensinando-os a cantar: "Eu sou negro e tenho orgulho". Quando o câncer surpreende alguém, nós não culpamos a vítima. Nós não repreendemos as alterações do seu corpo. Nós não condenamos a quimioterapia, que é um tratamento necessário para controlar a doença.

Alguém pergunta para uma doença o que faz com que o corpo se transforme, tentando tornar alguém irreconhecível? Alguém deseja que uma doença progrida e engula todo o ser de alguém, uma pessoa para quem um dia na praia seja impossível, que esteja impedido de brincar à luz do sol com os seus filhos porque é perigoso, que faz com que você viva sua vida sob guarda-chuvas, porque a sua condição se agrava sem eles?


Como é que esta pessoa pode ser acusada de "mentirosa", de estar abandonando a sua própria origem étnica? Como alguém pode ser rotulado de freak, quando as mudanças em seu corpo são involuntárias e precisam ser ocultas, a fim de manter a pessoa pública e o status de astro que o mundo espera dele? Como não se tornar uma pessoa amarga, irritada, menos do que humana? Como é que continua a performar no centro do palco, sabendo que a maquiagem esconde um segredo e o temor de que, se revelado, poderia afastar até os fãs mais leais?

Vitiligo é uma doença que faz com que a pessoa perca a pigmentação da pele. Manchas brancas começam a aparecer e como a doença progride, a pele mais e mais assume um tom pastoso. Michael tinha o vitiligo universal, a forma mais grave, que afeta mais de 80% do corpo. A doença apaga a pigmentação, tornando a pele, eventualmente, translúcida.

Nos estágios iniciais, a pele fica manchada porque o corpo começa a atacar suas próprias células de melanócitos, que produzem a cor da pele. Conforme a doença progride, mais e mais o corpo se torna branco. O que resta então é o tratamento de apoio. No início, uma pessoa negra poderia usar maquiagem escura para cobrir as áreas despigmentadas. Mas, como cada vez mais aumentam as áreas afetadas, este recurso torna-se impraticável. Descolorir o restante da pele torna-se uma opção viável.

A luz solar agrava a condição e acelera a progressão do vitiligo. O uso de protetor solar torna-se imperativo. Passar o tempo na praia ou na luz solar direta pode causar problemas graves. Viver sob um guarda-chuva para bloquear o sol, pelo menos, retarda a doença e previner problemas de pele ou reações à luz solar.

Parece que o guarda-chuva criava mistério, acreditava-se que o motivo do seu uso era além de protegê-lo do sol. Uma metáfora para o mistério? Oh sim, e muito eficaz para isso, chamou a atenção. E como Michael amava ganhar atenção, porque sua carreira, é claro, dependia dela. Mas como é que se tornou uma metáfora não somente para o mistério, mas para o obscuro?

Como Michael assumiu o risco, quando ele saiu de sua intimidade e deu uma entrevista pública, revelando, com grande trepidação, que havia algo de errado com seu corpo? Que seu sistema imunológico não estava funcionando corretamente, que ele estava lutando com as questões de confiança de seu próprio corpo, que parecia tê-lo traído?

Que sua identidade, sua aparência e tudo o que ele representa criou para ele uma crise existencial, porque uma doença involuntária se instalou em seu corpo - um corpo que é importante para a presença de palco, para o desempenho, para a identidade, por status, seu trabalho e sua vida? Como é que ele então conciliou, revelando o mais íntimo dos segredos de sua vida e, então, ser chamado de mentiroso?

O que é mais íntimo do que o próprio corpo? O que é mais preciosamente guardado? O que é mais ameaçador para uma estrela no palco, do que as mudanças involuntárias na saúde e na aparência? Será que temos chamado algum paciente com câncer de mentiroso? O teríamos condenado por buscar tratamento para uma doença fatal? Michael merecia a nossa compaixão, e não ridículo.

Onde estava a compreensão para este homem que estava lidando com uma doença que ameaçava sua própria vida, como ele sabia disso e, como também sabíamos? Onde estava a mensagem: "você ainda é amado?" Ainda é relevante? Ainda humano? Ainda assim, era esperado de Michael que ele continuasse a pregar o Amor? O Michael que temos feito maior que a vida? O único que nos deslumbra? O único que nós esperamos que seja perfeito aos nossos olhos? Onde estava nossa humanidade? Nossa compaixão?'

Reverend B. Kaufmann (escritora, educadora e ativista)

Fonte: www.innermichael.com